Os bons são a maioria

Mari ☽
9 min readJun 24, 2021

Em setembro de 2019, enquanto uma aula de direito penal I acontecia bem na minha frente, eu lia uma matéria da National Geographic sobre o lítio nos desertos da América do Sul e pensei que algum dia, esses desertos deixariam de ser acessíveis ou, simplesmente, não existiriam mais. Foi assim que começou a nascer a ideia de fazer uma viagem.

Em meio às explicações sobre o direito penal, comecei a rabiscar em um papel o que seria um possível roteiro e me perguntei como eu poderia fazer para chegar até aqueles lugares. Nessa hora, vi que havia lugares demais para dinheiro de menos.

Depois de alguns dias pensando sobre o caminho que percorreria, conversei com um amigo, Adriel, que estava morando no Chile e concluí que a viagem seria possível se a maior parte dos trajetos fosse feita em caronas. Após conhecer todo o plano, minha dupla de vida — e da viagem, Victória, não recusou a ideia. O que inicialmente seria uma viagem ao Atacama desenvolveu-se em um caminho pela Patagônia, com destino ao Ushuaia, o fim do mundo.

No dia 26 de dezembro, cheguei em Santiago e vi, de longe, Adriel me esperando pacientemente no ponto de ônibus, para me acompanhar até a sua casa. Foi durante uma longa conversa que tivemos, à noite, enquanto jantávamos, que comecei a vislumbrar nos meus pensamentos uma frase que encontrei uma vez no Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, “as viagens são os viajantes”.

Adriel foi a primeira pessoa em quem encontrei a gentileza que seria tão presente ao longo desse tempo. Antes mesmo de deixar Belo Horizonte, eu já contava com os bons incentivos vindos dele e isso me ensinou que uma viagem começa quando a encontramos dentro de nós, quando descobrimos que vamos realizá-la. Hoje eu vejo que gentileza foi a palavra que me acompanhou do início ao fim, apresentando-se nos gestos de quem cruzava o meu caminho. E é sobre isso que vim escrever. Sobre alguns encontros gentis.

Na primeira página do caderno que levei, escrevi sobre as pessoas que conheci em San Pedro de Atacama, que acabaram se transformando em amigos. Dentre elas, a Verity e o Nic, um casal recém formado na faculdade, que atravessava a América do Sul de carro, em direção ao norte, tendo como destino final o Alasca. Dois meses depois, eles se hospedaram em minha casa, em BH, para passarmos o carnaval juntos.

Outro casal foi a Rosa e o Zé, já bem mais velhos que nós, que viajava de carro desde Jaraguá do Sul — SC até o deserto. Prometi a eles que quando fosse para Ushuaia de carro, passaria em Jaraguá para visitá-los e Zé me garantiu que faria um churrasco. Os bons encontros, logo no começo da viagem, me pareceram bons presságios para o que estava por vir.

Um dia antes de deixar o Atacama, fomos aos geysers ver as explosões de vapor d’água abandonarem a terra e, enquanto eu esperava na fila para ir ao banheiro, encontrei pregado na parede um adesivo com o escrito: “os bons são a maioria”. Celebrei cada uma dessas palavras e cuidadosamente guardei-as em mim.

A primeira carona que pegamos em direção ao sul foi saindo de Temuco, no Chile, até Pucón. Eu e Victória esticamos nossos braços na estrada, com a bandeira do Chile pendurada na mochila e uma plaquinha caseira com a bandeira do Brasil na mão. Depois de algum tempo, uma família — pai, mãe e uma bebêzinha — aceitou nos levar até o meio do caminho. Novamente estendemos o nosso braço naquela estrada cheia de florzinhas amarelas. William e sua filha de oito anos, Fernanda, pararam o carro e dentro dele nasceu a primeira longa conversa em uma carona e ela acendeu uma chama muito forte, que era a incansável vontade de ouvir o que cada pessoa que nos levaria teria a dizer. Fui percebendo que pegar carona é entrar em uma caixinha de histórias.

Antes de entrar nos carros ou caminhões, eu sempre sentia um entusiasmo misturado a uma curiosidade. Geralmente, alguns poucos minutos após me assentar no banco ao lado do motorista, iniciava-se uma conversa que nos acompanharia por todo o trajeto.

Semanas depois da carona de Fernanda e William, após caronas com um músico, com os Carabineros de Chile — a polícia local e com outras pessoas, cruzamos a fronteira entre o Chile e a Argentina a pé, saindo de um lugar chamado Pirihueico, a caminho de San Martin de Los Andes, onde não tínhamos lugar passar a noite. Na estrada em frente ao lago, em San Martin, conheci uma das pessoas mais inteligentes e curiosas que encontrei, Lautaro, que nos levou em uma carona que durou quatro horas.

No caminho para San Carlos de Bariloche, conversamos sobre literatura, sobre a política no nosso continente e ele me contou a sua história. Ao longo do tempo, fiquei sabendo que ele já tinha lido diversos clássicos, daqueles bem longos, que gastam tempo para serem digeridos. As conversas sobre política tinham uma profundidade que me alegrou bastante e era incrível perceber o quão sinceros eram os seus questionamentos sobre quase tudo que há nesse mundo. Cerca de meia hora antes de chegarmos no local em que ele nos deixaria, perguntei sobre o seu trabalho e ele disse “eu corto pasto”.

Depois de ter passado alguns anos servindo ao Exército Argentino e sonhando em contribuir dessa forma para o seu país, Lautaro acabou percebendo no ambiente militar uma corrupção que fez com que desistisse dessa carreira. As reviravoltas em sua vida profissional e pessoal o trouxeram, na época em que o conheci, ao trabalho de cuidar dos pastos da região de San Martin. Naquele momento, mais uma vez na vida, concluí que o conhecimento que eu busco não fica preso às quatro paredes de uma universidade, mas que ele é livre e corre solto por toda parte.

A caminho de um lago que ficava um pouco distante de Bariloche, estávamos na estrada com os braços estendidos, até que vi, esperando em um ponto de ônibus, Camila, uma menina que parecia ter a nossa idade. Comecei a conversar com ela e perguntei para onde ela iria — coincidentemente era para o mesmo lugar que eu. Disse a ela que estávamos em busca de alguma carona e ela decidiu que iria com a gente. A sintonia foi tanta que, um mês depois, eu e Victória nos hospedamos em sua casa, em Buenos Aires.

Nesse dia, pegamos uma carona com o Capitão Fantástico da Patagônia, também conhecido como Omar. Enquanto a Vi e a Cami conversavam no banco de trás, o Capitão Fantástico me contava das casas que construía em ônibus antigos e me falava sobre o quanto gosta de Florianópolis. No final dessa conversa ele nos perguntou se gostaríamos de conhecer as casas que ele criava e nós aceitamos o seu convite.

Antes de descermos do carro, ele tirou do porta-luvas um papel colorido, cheio de números e de símbolos, e me perguntou o dia do meu nascimento. Omar nos contou que, segundo as indicações de um calendário lunar maia, Victória e Camila eram dragões vermelhos e eu, uma águia azul. Essa foi nossa primeira carona permeada por conversas místicas.

A casa do Capitão era cercada por pés de amora e de cereja e por ônibus coloridos, transformados em casas. O seu quintal se transformava no lago Nahuel Huapi.

A ida de Bariloche para El Bolsón foi bem cansativa e nos mostrou outros lados da região, marcados pela pobreza, que sofrem bastante com o frio extremo, durante o inverno. Pegamos uma carona até a rodovia e nela, pegamos uma outra carona apenas para não ficarmos paradas ali, pois era perigoso. Depois de um bom tempo esperando, finalmente, dois amigos nos levaram até o nosso destino final, que ficava a duas horas de distância.

Perto de El Bolsón, no vilarejo onde nos hospedamos, chamado El Hoyo, conheci uma pessoa cheia de histórias incríveis, com quem atravessei uma noite inteira ouvindo cada uma delas. Alex era alemão, sagitariano com ascendente em sagitário, e tinha vindo parar na América do Sul, quase três anos antes, de carona em um veleiro. Fiz questão de anotar isso em meu caderninho, porque, até então, eu não sabia dessa modalidade de caronas. Conversamos por horas em volta de uma fogueira e o tempo voava, sem que eu sentisse.

Em busca de chegar em El Calafate (o que, na verdade, demorou 3 dias), entramos em um carro que tocava poemas no rádio e, de repente, a Tabacaria, de Fernando Pessoa começou. Eu me lembrava de algumas estrofes que havia memorizado e as recitava bem baixinho, junto ao ao eu lírico falante.

Nessa mesma carona, em uma conversa sobre o que é ser latinoamericano e sobre ancestralidade, o motorista de olhos verdes e de origens espanholas me disse que “é possível ser sem estar”. Guardei essa frase no meu caderninho e fiquei um bom tempo pensando sobre isso. Ele me dizia que, embora não esteja na Espanha e não tenha nascido lá, a criação que recebeu de sua família inteiramente composta por espanhóis imigrantes o permite ser algo que, por causa de algumas barreiras no espaço e no tempo, ele não está naquele momento. Ele se compreendia como um espanhol que não estava espanhol.

Logo antes dessa carona, depois de uma espera de duas horas na estrada, um senhor chamado José nos levou até Esquel e, no caminho, ele nos contou sobre como o seu Deusinho (Diosito) lhe fazia o bem e tinha, por ele, compaixão. Para ele, Deus estava nas montanhas da Cordilheira dos Andes e, ao mesmo tempo, era a própria montanha. Ele acreditava que tudo que pedirmos a Deus, com carinho, será ouvido. Quando ouvi isso, me lembrei do meu pai, que sempre me fala coisas parecidas com essa.

Meses depois disso, enquanto lia A História da Eternidade, de Borges, me lembrei dessas duas conversas em um trecho o qual dizia que, segundo Plotino, a eternidade é encontrada quando “todos estão em toda parte, e tudo é tudo. Cada coisa é todas as coisas. O sol é todas as estrelas, e cada estrela é todas as estrelas e o sol”.

Foram diversas caronas em caminhões, nas quais pude escutar histórias sobre as famílias daqueles que nos levavam, sobre a saudade que sentiam de suas filhas e filhos, sobre as estradas e as músicas da Argentina. Com um deles, ouvimos músicas gospel locais, no último volume de um rádio com chiados, com outro, ouvíamos Bruce Springsteen, Johnny Cash, Queen e Elton John, cantando bem alto e rindo de nossos desafinados.

Um homem muito gentil, chamado Tony, nos levou até a cidade de Perito Moreno, deixando-nos bem na porta de onde dormiríamos, um hotel que tinha corredores escuros e desbotados, que me lembravam um hospital. Ao longo do trajeto ele disse “vou tratá-las como eu gostaria que tratassem minha filha, no dia que ela decidir conhecer o mundo a sós”. Ele, de fato, nos tratou como família e nos comprou água, salgadinhos e docinhos de caramelo, além de ter nos levado para conhecer um lugar chamado Rio Mayo. Quando ele me contou que era cozinheiro de navios, não consegui segurar as minhas inúmeras perguntas sobre a vida no mar. Desde quando comecei a ler os livros do Amyr Klink, há alguns anos, despertou-se em mim uma enorme vontade de viver, também, no mar.

Ainda no longo caminho para El Calafate, cometi o erro de aceitar uma carona que nos deixou na metade do caminho, em um posto de gasolina no meio do nada na Ruta 40 — mais especificamente em Gobernador Gregores, onde eu tentei, a todo custo, conseguir uma carona para o sul. Passamos o dia inteiro lá e não deu, precisamos andar 2km com as mochilas pesadas, para encontrar um lugar para dormir. Apesar do dia frustrante e cansativo, pude perceber o quão forte era a minha amizade com a Victória, que em momento algum me fez sentir mal pela escolha que fiz nesse dia.

Depois de ir a El Calafate e El Chaltén, tivemos uma longa jornada até Ushuaia, que durou dois dias — e inúmeras caronas. Caronas em caminhões e em carros, travessias em balsas, ventos muito fortes e pouca comida.

Fomos de El Chaltén a Río Gallegos, ainda tendo bons sanduíches, em alguns caminhões que faziam várias paradas. De Río Gallegos a Ushuaia, foi um longo caminho. A primeira carona foi com um rapaz que não pôde cruzar a fronteira — a crença de que chegaríamos facilmente a Ushuaia desapareceu completamente. Estendemos novamente os nossos braços logo após ao controle de fronteiras e por um bom tempo não conseguimos nada e ainda precisávamos pegar a balsa para a Terra do Fogo. Com a ajuda de alguns caminhões e de nossa última carona, em um carro, conseguimos chegar a Ushuaia ainda de dia. O cenário do extremo sul já era muito diferente do que vimos nos dias anteriores — e se transformava o tempo inteiro, tanto a vegetação, quanto a meteorologia. A chegada na cidade é marcada pelo contorno de várias montanhas, que terminam no mar.

Quando descemos do carro, comecei a sentir saudade do frio na barriga que as caronas me traziam. Em Ushuaia, ao me despedir das caronas, comecei a pensar sobre a possibilidade de um dia ir de carona em um veleiro até o pólo sul, me inspirando no que o Alex me contou.

Atravessamos quase 3000km, em dezenas de caronas que poderiam se transformar em um livro. E, a cada vez que deixávamos os carros que nos acolhiam por alguns minutos ou por horas, eu me lembrava da frase que encontrei lá no comecinho. É muito bom poder testemunhar, bem de perto, que os bons são a maioria e que eles estão espalhados por toda parte.

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