Teve uma época, por volta de 2004 ou 2005, que a gente era náufrago.
Tudo que havia sobrado, desde quando o nosso antigo barco afundou, era o bote salva-vidas em que estávamos, algumas xícaras, pratinhos e talheres coloridos. A comida a gente imaginava. A água doce era coletada durante as tempestades e ficava armazenada na garrafinha que compartilhávamos. Cada um ficava enrolado em uma toalha, sentado de perna-de-índio, um de frente para o outro, imaginando como seria chegar de volta em terra firme.
Um dia, toda essa história começou a ficar triste demais, então resolvemos abandoná-la. Foi então que, eventualmente, nos transformamos em cavalos.
Andávamos no chão sob quatro patas — e foi desse jeito que desgastamos nossas calças de pijama na parte do joelho. No meio da sala de casa havia uma ponte-túnel (que alguns viam simplesmente como o pé da mesa em U) que servia para cavalos atravessarem o rio. Mas só eu conseguia passar por ela. Meu irmão, que na época se chamava Anibel, era gordinho demais para atravessá-la. E, nas poucas tentativas que realizou, ficou preso. Infelizmente, eu nunca pude ajudá-lo a sair, pois não era possível parar de rir. O resgate chamava-se mãe.
Tempos mais tarde, viramos donos de um lava-jato e de um posto de gasolina, ao mesmo tempo em que éramos construtores de uma cidade onde moravam carros bem coloridos. Subíamos paredes de Lego e de toquinhos, para abrigar os habitantes que eram do tamanho de nossas mãos.
Nesse mesmo período, eu tinha uma floricultura na casa da minha vó e trabalhava como arquiteta. Na parte de trás da minha pequena loja-escritório, ficava o meu jardim de espécies imaginárias e, enquanto eu as cultivava, meu irmão andava de patinete por aquela enorme cidade que ficava no quintal.
Depois de um tempo, nos mudamos para um lugar que, dois anos mais tarde, eu descobri que não era tão seguro quanto eu pensava. Havia uma guerra acontecendo bem ali, entre dois reinados que se diziam governantes de toda a região.
A guerra desencadeou-se com a invasão do nosso reino, realizada por criaturas mágicas amaldiçoadas, que vieram a mando do rei da outra margem, na tentativa sequestrar a filha do nosso rei, que ia completar um ano em um futuro que nunca chegou. Ela era a princesa a quem eu, meu irmão e todas as crianças que viviam ali passamos a proteger com toda lealdade. Tínhamos que levá-la para um lugar seguro, que ficava do outro lado das montanhas, onde o rei e a rainha estariam nos esperando.
Assim, armados de espadas, escudos e arco-e-flechas, cruzávamos pântanos, florestas e campos. Felizmente eu tinha uma mapa, feito em folhas grandes que engenheiros usaram para imprimir os seus projetos. Toda quinta eu completava “a parte que faltava”, deitada no chão com giz e lápiz-de-cor, para que na sexta à noite, depois da aula, o mapa estivesse pronto para que continuássemos a nossa travessia sem fim.
No começo, essa brincadeira não tinha nome. Depois, passou a se chamar “daquela brincadeira”. Nenhum dos integrantes questionou. Nunca chegamos a completar o itinerário, mas, nessa eternidade, protegemos a princesa, lutamos contra monstros terríveis, brigamos e fizemos piqueniques que caçávamos, cada vizinho, na cozinha da própria casa.
Por muito tempo eu e meu irmão fazíamos cabanas também. Com lençóis, travesseiros e almofadas. O tempo para criar uma cabana era trinta vez maior do que o tempo que passávamos dentro dela. Mas nunca nos questionamos sobre o porquê de fazê-las. Era essa a graça: criar um lugar juntos.
Mesmo com o passar dos anos, que nem são tantos assim, continuamos a criar lugares. Inclusive, um no outro. Acontece que, dessa vez, a gente vai para uma cabana de verdade, no meio de uma floresta de verdade, em uma viagem de verdade, juntos pela primeira vez. E planejar esses dias me fez lembrar de todas essas coisas que a gente já foi juntos. De todas as brincadeiras que eu já inventei para a gente passar o tempo.
Parece que a gente cresceu — e ele de fato cresceu muito. Inclusive, eu já fui maior que ele por um bom tempo. (Acho importante mencionar isso). Mas a verdade é que a gente nem mudou tanto. Eu continuo inventando histórias e ele continua a fazer parte de todas elas (ou quase todas), de algum jeito. Dessa vez, por exemplo, eu inventei essa viagem que está prestes a chegar. E percebo que o que continua exatamente como antes é que a gente continua sendo irmão. Não por acaso, agora, mas por escolha de permanecer assim.