Bolsos

Mari ☽
2 min readMar 7, 2023

enfiei a mão no bolso do meu casaco
e encontrei areias de lugares onde já não estou mais.
do bolso traseiro da minha calça retirei folhas secas de um pinheiro que vi no Uruguai
que tinha o mesmo cheiro daquele que vivia no quintal da casa de uma tia avó, em Diamantina.

a memória dessa tia foi embora de sua cabeça
antes mesmo que sua última respiração se completasse
e agora, o seu corpo que ainda pulsa
não se lembra mais dos dias que viveu.
foi essa tia avó quem me apresentou o esquecimento.

desde criança, sem que ninguém me sugerisse
passei a me registrar
em cadernos, em paredes, em coisas
para poder me visitar um dia
quando eu já tiver me tornado outra coisa.

me lembro da vez
que me dei conta do passar do tempo
ao arrumar minha gaveta de fitas cassete.
de repente
senti saudade da época em que eu era ainda menor
e entendi que logo logo aquelas memórias desapareceriam
ao ceder espaço para as outras
que eu ainda desconhecia.
eu tinha quatro anos
e vi, dentro de mim, a minha própria dissolução.

meses depois, como profilaxia aos temidos esquecimentos futuros
transformei uma latinha de biscoitos
que era da minha mãe
em uma caixa de memórias
onde ao longo dos anos eu guardei pedacinhos de coisas que me encantaram
e que um dia foram muito importantes para mim
(também resolvi guardar lá os meus dentes de leite e desde então posso assistir ao oxigênio consumi-los).

essa latinha me permitiu desenvolver um reflexo
de olhar através das coisas que estão ao meu redor
e pensar no que elas me dizem sobre o que vivo
nos presentes que rapidinho se vão.

tudo que existe é capaz de dizer algo
e eu tento escutar.
então, enfio em meus bolsos
pedaços do que existe junto a mim

escrevo os meus próprios registros
sobre as pessoas que conheço e que estão vivas
ao mesmo tempo em que eu também estou.
guardo em minhas gavetas
galhos e pedras
espalho pelo meu quarto
pedaços de árvores e desenhos
para poder me encontrar
do lado de fora de mim.

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